terça-feira, 27 de setembro de 2011

"Não é preciso apagar a luz, eu fecho os olhos e tudo vem"
(Os Paralamas do Sucesso - Caleidoscópio)

No túnel
O trem parou na estação. Com a testa apoiada no vidro frio da janela, eu olhava para fora, para o túnel comprido ao meu lado. Vinha chegando um trem – eu ouvia seu ruído. Percebi apenas vagamente quando a mancha clara e disforme cintilou no meu campo de visão. Aproximava-se rápida e inevitavelmente, e eu, sem desviar os olhos, descobria-o aos poucos revelando-se em toda a sua extensão. Até que parou. Emparelhados, os dois trens, viam-se.

Ainda sem mexer os olhos, deparei-me com um rosto que chorava. Com a cabeça encostada o vidro, olhava etérea e evasiva para algum lugar além da compreensão cotidiana. Lágrimas contínuas lhe cindiam a face como um mosaico de tristes cores. Queixo apoiado na mão, parecia entregue a seus pensamentos como a um destino do qual não se consegue escapar. Algumas vezes tentava, em vão, enxugar o rosto com a manga da blusa, porém suas tristezas tornavam a escapar-lhe olhos a fora, a dentro, inundando-a de realidade.

No reflexo úmido de seus olhos, compreendi sua dor. Compreendia pro completo aquela mulher que chorava. Sentia como se fosse minha aquela angústia que com delicadeza marcava tão fortemente suas feições. Eu também sabia o que era doer de existir. Olhando para aquele roso que chorava, pude sentir o que em mim já não estava, mas havia. Também eu, também eu tinha dores que me cortavam no fundo do que de mais meu existia. Também eu queria chorar, queria dissolver-me em um rio de mágoas até que as águas me lavassem por dentro. Um grito mudo desesperou-se de minha garganta.

Senti que meu corpo se movimentava para frente, alheio aos meus comandos. Um tranco, e logo o trem levava-me para longe dali, para longe daquela que chorava. “Não vai, não vai, não vai...” Foi embora. Nunca mais a veria. Dela, não sabia nem o nome. Só sabia de sua dor. Não, não sabia o motivo. Nem sua história, seus medos, seus vazios. Mas sabia de sua lágrima. E isso era tudo. Eu amava aquela mulher. Amava suas lágrimas. Amava seu deixar-se entristecer. A dor aguada de sua alma, sentia-a eu em minha secura.

Carolina Zuppo Abed

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Fuga

“Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.”

Fernando Pessoa

Hoje de manhã reparei que nossa música tocava no rádio. Surpreendi-me um pouco com esse clichê adolescente se infiltrando assim no meu cotidiano. Lembrei-me daquela vez em que fomos de casa até a praia ouvindo-a repetidamente no toca fitas. Aliás, nunca mais vi nossas fitas cassete. Estão com você? Ou foram embora em alguma faxina tecnológica? Gostaria de olhar para elas de novo, mesmo que já não haja mais onde escutá-las.

Não repare, ando meio saudosista. Acho que é vontade de encontrar alguma parte de mim que se perdeu num passado indistinto. Minha poesia talvez. É, talvez...

Outro dia desliguei meu celular e liguei para ele só para ouvir minha própria voz, congelada no recado gravado três anos atrás. Eu sei, eu deveria trocar de aparelho mais vezes. Mas isso me cansa, você sabe. No fundo eu sou mesmo muito afeito aos meus velhos hábitos. (Sim, você tem razão, sou um cara quadrado.) Mas, sabe, ouvir minha voz assim capturada e registrada há tanto tempo me fez sentir um certo arrepio. Me esforcei por lembrar quem era o dono daquela voz. Ainda estou com a sensação de que ela pertence a alguém que eu sei que conheço, mas não consigo me lembrar quem é. Não, não estava ali o rosto seqüestrado do espelho que eu buscava encontrar e trazer de volta pra casa.

Por falar em encontrar, nos vermos um dia desses? Uhm, não sei. Tenho medo de que não me reconheças mais, e nem eu a mim no reflexo dos teus olhos. Não sou mais a gota de orvalho na flor à margem do ribeirão do sítio do seu avô. Nem o... Mesmo assim? Pode ser. Mas não pense em encontrar um velho amigo. Pense mais em conhecer alguém de quem você já ouviu falar.

Bom, acho melhor eu continuar a encaixotar as coisas. Rever gavetas esquecidas, jogar fora o que não tem mais lugar, tirar o pó do que sobrar. Mudanças são sempre difíceis.

Carolina Zuppo Abed

quarta-feira, 22 de junho de 2011

"(Eis um caso que há de perguntar: é preciso estudar ignorâncias para falar com as águas?)"
(Manuel de Barros - "O menino do mato")



Metamorfose

Sinto saudades,
do mesmo sol que queimou teu rosto
no mesmo banco que estou agora.
Os chás das manhãs
Tu jamais foste a mesma,
se foi, não foi minha
Eu jamais fui o mesmo,
se fui, não fui eu
Mas a marca corada no rosto
e o amarelo dos teus olhos jamais serão diferentes,
não nessa metamorfose repleta de saudade.
Tu foste a inconstância
que só eu podia ser.

Raoni Silva Moura

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Ao colega Glauco:

Glauco Quedas nunca foi propriamente meu amigo, era uma pessoa que todas as vezes que me via estendia-me a mão e cumprimentava-me olhando nos olhos e dizendo: Boa noite, tudo bem com você? Hoje, sinto-me por nunca ter estendido essa conversa. Glauco tinha postura de líder, mas daqueles que também sabem ouvir. Quando entrava atrasado arrancava sorrisos, um daqui, outro dali, principalmente das mulheres. E causava também muita admiração, pela postura e caráter que tinha. Arrancou sorrisos de todos, sem exceção, fosse na piada aberta, ou naquela mais interna, das “patotinhas” que sempre se formam.

Glauco foi levado pela violência, pela triste realidade que somos obrigados a encarar. Um sem coração levou aquele que tinha muitos corações, cheios de alegria em cada um deles.

Hoje, o Rosa de Papel, murcho e sem pétalas, presta sua singela homenagem a Glauco Quedas, para que fique aqui imortalizado.

Se teu sorriso fosse assim,

Sempre eterno.

Se teu olhar viesse a mim,

Fazendo rir, riso sincero.

Mas se hoje tu não é mais,

Digo-lhe que és sim, companheiro.

Muitos guardar-te-ão no peito.

Só parte aquele que não deixa lembranças.

Não foi o teu caso.

Por Raoni Silva Moura, em homenagem ao amigo Glauco Quedas.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

"Cuando me enamoro doy toda me vida a quién se enamora de mi
Y no existe nadie que pueda alejarme de lo que yo siento por ti"
("Cuando me enamoro" Andrea Bocelli)

Saio do amor como quem sai da vida,

Devagarzinho, perdido, triste.

Como quem pensa que amanhã não sabe

Que hoje não lembra e que ontem não houve.


Já parto com vontade de voltar,

Mas volto com vontade de partir.


O mundo cai como um suor que escorre,

Cortando a face junto à lágrima

E como curar essa cicatriz invisível?

Esse corte profundo da alma.


Você me tirou da sombra quando estive lá

E jogou de volta quando estive aqui.


Queria sair do amor para entrar na vida

Leve, sereno, sincero

Como quem pensa amanhã será

Que hoje é certeza e que ontem sorri


Raoni Silva Moura

terça-feira, 17 de maio de 2011

"A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios." (Machado de Assis)

Ressaca

Não me lembro de minha mãe quando estava acordada. Lembro-me dela sempre dormindo, deitada em meio aos seus brancos lençóis. Como um anjo, envolta por finos véus de linho. Habitava seu altar sempre imóvel, inacessível. Eu a olhava com os olhos bem abertos, admirando-a em cada rara mudança de posição, como se fossem mudas esculturas sucedendo-se umas às outras. Passava, às vezes, uma tarde inteira ao pé de sua cama, inventando brincadeiras quietas para não acordá-la, e sempre parando para olhar para ela. Amar minha mãe era ficar ali, vendo-a dormir, como um guardião de seu sono sacro. Amá-la era vê-la enquanto ela mesma não via nem a si, nem a mim. Eu sabia. E compreendia. No alto dos meus oito anos de sabedoria, eu amava.


Jamais escreveria um livro sobre minha mãe. Minha mãe não cabia em palavras. As palavras não faziam parte de seu mundo. Ela era feita toda de cores. Espalhada sobre sua tela branca, minha mãe era o vermelho em seus lábios finos, o rosa na sua face magra, o roxo embaixo dos olhos sempre fechados e, por trás deles, o verde intenso que eu adivinhava, mas nunca via. Todas essas cores destacavam-se no branco de sua pele, que contrastava com o preto de seus cabelos de um modo que faria Almodóvar se impressionar. Minha mãe era uma galeria inteira de cores e formas, quadros e fotos.


Mamãe falava comigo através dos cheiros. A cada dia emanava de sua ara um aroma diferente. Eu, sentinela dedicado, com o tempo fui aprendendo a entender cada cheiro, a ouvir sua mensagem escondida. Porque os cheiros que se desprendiam de mamãe contavam histórias, histórias sobre ela, sobre a vida, sobre todos nós. O que eu mais gostava era um cheiro bastante complexo, que eu não consegui decifrar até descobrir a embriaguez. Aquele cheiro – que mais tarde vim a saber ser a mistura de álcool, cevada e o perfume adocicado da penteadeira – era forte e rescendia a vida, e por isso era o meu preferido: ele trazia notícias de uma vida que eu pensava não existir, de um mundo fora do quarto. Era a certeza de que havia algo além daquilo, algo mais a dedicar uma vida. Às vezes esse cheiro trazia consigo algum outro de empréstimo, um mais cítrico, amadeirado ou apimentado, mas esses cheiros visitantes nunca se demoravam a ir embora. Já o cheiro de mamãe, esse sim, persistia marcante por todo o ambiente, dominava-o, preenchia-o. Quase não parecia pertencer à mesma pessoa que, em outros momentos, cheirava a flores brancas e algodoal, um cheiro tão fraco que se escondia se não prestássemos atenção.


Um dia, brincando próximo da janela do quarto que era o cenário da minha infância, ouvi minha mãe suspirar fundo enquanto se virava. Parecia estar acordando, e durante alguns minutos sem duração eu acreditei que era isso que aconteceria. Mas após o movimento de cabeça mais longo da minha vida percebi que nada mais iria acontecer. Mas era tarde. Aquele som vindo da quietude eterna de minha mãe era um chamado, uma sedução, uma promessa. Quis, mais do que já havia querido, estar mais perto dela. Queria senti-la. Queria poder amá-la de outro lugar que não fosse o chão.


Subi na cama com tanto respeito, amor, temor, humildade que parecia um velho sábio aprisionado naquele corpo de menino. Quieto, muito quieto, fui me aproximando. Deitei-me e esperei. Silêncio. Cheguei mais perto, só um pouquinho. Fui aproximando meu travesseiro do dela até eles se encostarem. O mais próximo de minha mãe que eu jamais havia chegado.


Tomado de coragem por aquela proximidade, encostei de leve meu pé em seu pé. A pele de mamãe era quente como um banho antes de dormir. Fiquei ali, encolhido, quieto, a felicidade e o medo tão próximos um do outro que eu quase não os distinguia. Era tão bom estar ali que eu não queria que acabasse. Sentia o calor fugir das minhas mãos e concentrar-se nas minhas faces, espelhando o sempre rubro rosto de minha mãe. Não ousava nem respirar. Aspirava o mínimo de ar possível e o guardava em meu peito quanto tempo conseguisse, tentando aprisionar aquele perfume que hoje era brando, branco, leve. Meu coração batia curto, apressado, como um beija-flor que voasse parado no ar.


O tempo que fiquei ali para mim não existiu, mas durou toda a minha vida. Quando acordei, não quis abrir os olhos, com medo de que tivesse sido um sonho. Apertei-os com força, e me aninhei ainda mais. Meu coração voltou a bater forte, mas dessa vez não era o beija-flor que agitava meu peito. Estava inquieto, assustado.


Passados alguns minutos, fui me acalmando. Respirava fundo, demoradamente, e ia aos poucos relaxando os olhos. Até que resolvi abri-los. Eu precisava voltar. Entreabri primeiro um olho, só uma frestinha, e o que vi me fez sorrir. Eu ainda estava lá. Abri os olhos de uma vez. Ela também estava lá. Via seus cabelos negros bagunçados sobre o travesseiro, no outro canto da cama. Feliz, deslizei para o chão. Fiquei lá ainda por um tempo, brincando como de costume, no meu canto, no meu chão.


Entrou no quarto a dona da pensão, como todos os dias. Hoje, porém, vi que sua expressão mudou assim que pôs os olhos em minha mãe. Ela ficou ali, parada à porta, com a bandeja de café-da-manhã que trazia pra mim ainda em suas mãos. Como eu estivesse com fome, dei a volta na cama e fui em direção a ela, pegar o meu café. Ela ainda olhava fixamente para minha mãe. Olhei também, e o que vi não mais me abandonou.


Eram lindos, os olhos dela. Verdes. Muito verdes. Guardavam em si todo o mistério de uma floresta viva e muda. Qualquer um que os visse ia se sentir atraído para ela, embora soubesse no mesmo momento que não mais sairia de lá. O aro arroxeado que os emoldurava carregava em si um sinal de perigo. Cilada. Era fácil perder-se naqueles olhos. Era preciso perder-se naqueles olhos.


O médico disse que foi o coração, que não aguentou e parou de bater.


Carolina Zuppo Abed

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"Dava tudo por amor
Vim de longe
Dava para sentir
Você dançando só pra mim"
(Marcelo Camelo - Acostumar)


Luxuoso

Como é luxuoso este silêncio
o silêncio de olhar nos teus olhos
e sem abrir a boca lhe dizer que amo
De quando interrompido é pois
coração que bate mais forte, acelerado
com o ritmo do seu silêncio.

Raoni Silva Moura


quinta-feira, 3 de março de 2011

"Tem um ditado dito como certo
Que cavalo esperto não espanta a boiada
E quem refuga o mundo resmungando
Passará berrando essa vida marvada"
(Mestre da Viola Caipira Renato Teixeira, "Vide Vida Marvada")



Namorada

Meu amigo Ezequiel tinha uma namorada
Não me lembro o nome dela
Também não cheguei a conhecer
Mas sei que era bem bonita.

Meu irmão Emanuel tinha uma namorada
Só me lembro o nome dela
Nem sei quando a conheci
Mas não era tão bonita.

Meu pai Josiel tinha várias namoradas
Mas eram tantas que nem sei
Minha mãe não gostava delas
Nem das que eram bonitas.

Eu não tinha nem uma namorada.
Se tive, não me lembro dela
Mas também não tive amigo, nem pai, nem irmão
Tive uma mãe, acho que gostava dela.

Raoni Silva moura


terça-feira, 26 de outubro de 2010

"Para um escritor criativo, a posse da "verdade" é menos importante que a sinceridade emocional".
(George Orwell)


(In)Verso

Do fundo do espelho embriagado
Viu teus olhos no reflexo invertido
Buscou os cacos da tua embriaguez
No infinito da dimensão refletida
E, de dentro dos olhos distantes
O sol mostrou sua vida espelhada
Um coração bateu sem sentir
Vida no fim do por do mesmo
Lua, não havia,
Era dia na embriaguez da vida.

Raoni Silva Moura










Corvo

Na noite escura ele passeia,
Corta o céu, voa, faz curva,
Corvo.

No dia claro ele descansa,
Esconde o sol, soa, faz cova,
Corvo.

No fim da tarde eu acordo,
Estico o corpo, tusso, faço caça,
Estorvo.

Raoni Silva Moura

domingo, 10 de outubro de 2010

"Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas."
(Dom Casmurro - Mestre Machado de Assis)


Por ti

Se te amo e digo-te que quero
é porque bate, no peito, um coração
parado, num movimento cíclico,
quadrado, tipo volta ao mundo,
tudo, como aquilo que é nada,
basta, mas não sacia,
bate, no peito, amor por ti.

Raoni Silva Moura

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

"Minha profissão é suja e vulgar/ Quero um pagamento para me deixar/ E junto com você estrangular meu riso/ Dê-me seu amor que dele não preciso..."
(Zé Ramalho - Garoto de Alguel)


Duas mulheres e um Civic


Um Honda Civic preto. Janelas abertas, o farol aceso. Canta a motorista enquanto a passageira se olha no espelho e retoca a maquiagem. Saem da av. Juscelino Kubitschek e entram na Av. Brigadeiro Faria Lima. À noite os carros conseguem andar por esse trecho, já pela amanhã, acredite, é um verdadeiro inferno. Carros buzinam, pessoas se xingam, outros nem sabem o que está acontecendo e muitos outros trabalham.

Uma noite quente, daquelas que fazem o ser humano ter vontades; vontade de beber, de amar, de trepar, fuder, sorrir, sei lá o que mais. É mais uma daquelas noites que é impossível ficar em casa sozinho. Uma cerveja com os amigos num bar qualquer é o mínimo que pode ser feito num dia desses.

O semáforo fecha, as duas se olham e sorriem. Mas não era um sorriso qualquer, desses que se dá a um amigo quando se está feliz. Era um sorriso malicioso, uma mistura de desejo, ambição e sexo. Elas não se falam, apenas se olham, admiram-se.

Essa é talvez a maior qualidade e o maior defeito das mulheres; o olhar. Uma mulher que “sabe” olhar é capaz de fazer o que quiser, na hora que quiser e como quiser com qualquer homem. No entanto, quando isso não acontece meu amigo, ela se torna vulnerável, se torna fácil, maleável. Certamente que os dois tipos atraem homens da mesma maneira. O que muda são as conseqüência. Mulheres sempre atraem os homens! O que não acontece é o contrário, homens nem sempre atraem as mulheres. Não importa o quanto feia elas sejam, um homem no “cio” come qualquer coisa, só não conta pros amigos.

O farol abre, o Civic arranca. Primeira, segunda, terceira marcha, a velocidade se estabiliza, a rádio toca um rock´n roll anos 80, estilo Rolling Stones. As duas cantam, e sentadas dançam. A passageira balança o pescoço, joga o cabelo, faz gestos e movimenta seus belos lábios carnudos. O vento toca sua pele com um prazer que me faz sentir inveja. Movimenta seus cabelos e deixa feridas que qualquer homem lamberia até cicatrizar.

O destino está próximo, algumas quadras e logo chegariam. Estavam adiantadas com relação ao horário marcado. Olharam-se, não disseram sequer uma palavra, viraram a direita numa rua mais calma e estacionaram com o objetivo de fazer a hora passar. A motorista desceu do carro, olhou-se pelo reflexo do vidro de trás, ajeitou os cabelos e disse a passageira:

- Me dê um cigarro!

O pedido rapidamente foi atendido. Logo desceu a passageira, deu a volta, encostou-se no carro ao lado da motorista, pegou o cigarro, acendeu, soltou a fumaça e disse:

- Você está realmente linda!

E assim, mais um olhar. Ah o que era aquilo caro leitor! Simplesmente alucinante. A motorista usava um vestido preto, longo, de alça, levemente decotado e com um belíssimo corte na coxa direita. Uma sandália de salto também preta, trançada, de muito bom gosto. De fato, ela estava linda. Aliás, estava não, ela era linda. Dona de uma juventude completamente alucinógena. Aparentava no máximo dezoito anos, o que se deduzia somente pelo fato de estar dirigindo, pois caso não estivesse diria que tinha quase dezessete. O vestido formava um verdadeiro plano de fundo com a função de destacar seus cabelos dourados e ligeiramente cacheados. Era uma ninfa companheiro. Daquelas capazes de deixar Baco sem vontade do vinho, de fazer Zeus abandonar o trono, de Romeu não amar Julieta. Sim, sem exageros, era tudo isso.

- Obrigado, respondeu a motorista. Após, deu uma leve piscada com o olho esquerdo e mais um trago no cigarro.

Cigarro é uma coisa interessante, mulheres bonitas ficam super charmosas e sensuais fumando, já as outras, ficam tão nojentas quanto um velho tarado. Uma mulher fumando seduz, faz o homem apreciar seus lábios, admirar seu corpo enquanto a fumaça sai. É fatal! Cada tragada um pensamento mais perverso, mais sarcástico, mais ilusório. É impressionante a capacidade que os homens têm de se imaginar com uma mulher. Em meio segundo ela já está pelada, em um segundo chupando seu pau, em um segundo e meio ele já a está comendo e em dois segundos ele goza. Para aqueles que têm uma ejaculação mais demorada, em dois segundos e meio ela já está dando o cu, em três segundos ele goza. Todos iguais. Por isso que eu admiro as mulheres, complicadas, confusas, mas belas acima de tudo. Afinal de contas, como dizia o “poetinha”; mulheres não foram feitas para serem entendidas, apenas para serem amadas. Aliás, Deus me deu um único dom, o de não entender as mulheres. Ah, como isso é bom! Imagina o quanto chato seria entender que elas jamais saberão estacionar, que jamais irão ao toalete sozinhas! Péssimo! Pior é pensar no velho tarado.

- Ainda temos um bom tempo, me dê mais um cigarro e aumenta o som.

Era nítida a submissão passiva da passageira. Bastava à intenção para ela atender as vontades da sua companheira. Mas não era nada forçado, era até bonito de se ver. Eu pelo menos gostava. Pareciam irmãs, quando a mais velha sempre manda na mais nova. Só que ai havia de fato um problema: elas eram irmãs.

Nasceram numa pequena cidade do interior de São Paulo. Família, pobre e desestruturada. Pai, nunca houve. Aliás, quem precisa de um pai? Uma mãe de verdade vale por três pais. Mas infelizmente a mãe também não era de verdade. A beleza das duas, por ironia do destino, era pura genética materna. A mãe morreu aos quarenta e cinco anos com um corpo de vinte e dois, uma pele de quinze e um juízo de doze. Viciada em cocaína desde os quinze anos viveu a vida baseada em exageros. Baladas, bebidas, cigarros, drogas e muito sexo. Era tanto sexo que na cidade não se conhecia um homem que não havia lhe comido. Acredito até que não havia um homem que não havia lhe comido junto com outro homem. Alguns pagavam, outros não. Bastava lhe fornecer uma carreira de pó que ela abria as pernas, e que pernas! Foram tantos que era impossível saber quais eram os pais das meninas.

Era apenas um ano e meio de diferença entre as duas. Cresceram numa casa que parecia mais um bordel do que um lar. Eram tantos homens diferentes que as meninas se quer conseguiam se lembrar de todos. Por causa disso cresceram rapidamente e independentemente dos cuidados da mãe. A mais velha sempre cuidando da mais nova com o maior carinho e apego do mundo. Iam para escola juntas, voltavam juntas, brigavam juntas e tudo mais. Quando tinham aproximadamente quinze anos a mãe morreu. Uma overdose de cocaína misturada com muito uísque, sexo e cigarros. A certidão de óbito era tão chocante que um vizinho impediu que as meninas lessem. Parada cardíaca, infarto do miocárdio, deformações vaginais e anais que mais pareciam sinal de estupro do que sexo consensual, fora outras lesões corporais.

Agora, de fato, órfãs. Tudo parecia acabado, ao olhar dos vizinhos, para aquelas crianças. Mas, para quem cresceu órfã com mãe em casa, viver era fácil. Pena que o ser humano, principalmente o homem, não se abala muito com a desgraça alheia.

Dois dias depois do falecimento da mãe, chegou à porta da casa um homem. Engravatado, bem vestido, terno dois botões, corte italiano, sapatos brilhantes, sorriso enganador e cheio de promessas. Duas horas depois as meninas já estavam de malas prontas e indo para o Rio de Janeiro. A promessa: casa, comida, roupa lavada e trabalho.

Ao chegar no Rio, o homem começou as negociações. Casa, comida e roupa lavada sem trabalho durou apenas três semanas. Logo este já estava arrumado. As duas, de uma vez só, foram vendidas para um grupo de rapazes por uma noite inteira.

Juntas, sofreram. Sem dizer não, sem deixar sequer uma lágrima cair. Desculpe-me leitor, mas narrar os fatos daquela noite é praticamente cometer o mesmo crime. Fizeram tudo, absolutamente tudo o que a imaginação fértil e regada a muito álcool daqueles rapazes poderia pensar.

Naquela noite as duas perderam o contato com os próprios corpos e viram, uma de cada vez, a imagem da mãe ao se olharem no espelho. Era impossível, naquele instante, saber o que aquilo poderia significar. A mais velha, quando já em casa, sozinha, lembrou e chorou. Lembrar da mãe, principalmente após o ocorrido, não era um sentimento bom. Diversas imagens lhe vinham à mente, e ela, automaticamente, previu o seu futuro semelhante ao da mãe. A outra, somente riu. Não pensou em nada. Riu, como se estivesse desafiando o próprio destino, e ela estava.

Pouco tempo depois as duas já tinham dinheiro para se manterem relativamente bem e sozinhas. Fugiram e voltaram para São Paulo, mas agora para a capital. E começaram a ganhar dinheiro sem nenhum intermédio. Continuaram na mesma profissão. Não era possível contratar apenas uma, somente trabalhavam juntas.

Alguns anos de profissão se passaram. Elas nunca chegaram a conhecer um homem de verdade. Nunca receberam amor, carinho, paixão ou qualquer outro sentimento digno vindo de um homem. Esses sentimentos só existiam de uma pra outra. E era forte, grande e absoluto. Mas não consolidado.

Um dia, após uma noite de trabalho desgastante as duas voltaram pra casa, quietas, sem trocar uma única palavra. Ao chegar em casa, a motorista, cansada, ajoelhou-se e chorou. Mas não era um simples choro, como aqueles que se dá quando sente dor ou quando se está triste. Era diferente. Um choro oriundo da vida, da falta de coragem, de vontade, um choro de lágrimas cortantes, lágrimas que ao cair sangram a face para deixar a invisível e permanente cicatriz da vida.

A irmã, sem saber o que fazer, sentou-se ao seu lado e a abraçou. Abraçou forte, cheia de amor, carinho, e compaixão. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Sempre foi a irmã quem lhe protegia e cuidava. Mas dessa vez a situação estava tão angustiante que a mais velha cedeu, e pela primeira vez na vida se deu conta de que não estava sozinha. Pela primeira vez na vida percebeu que alguém a amava de verdade, que alguém se preocupava com ela.

As duas se abraçavam com tanta força, com tanta vontade e, acima de tudo, com amor. Olharam-se e, como numa cena de cinema, involuntariamente beijaram. Beijaram-se como quem dá seu primeiro beijo. Um beijo longo, demorado, molhado. Aquele beijo que não se sabe ao certo o que se está fazendo, que bate, de repente, um medo tão grande de não estar fazendo direito, mas logo vem a cabeça uma vontade louca de esquecer isso e continuar beijando. E assim o beijo continua, não para, e as mãos não se movem, as pernas tremem. De fora parece que o mundo inteiro está olhando, o pensamento não mais lhe obedece e o mundo se resume a imensa distância entre as duas bocas. Meu amigo Leitor, era de fato o primeiro beijo de duas garotas que já não possuíam mais nada de virgindade no corpo.

As duas beijaram, beijaram com uma vontade que passava dos limites impostos pela própria vontade. Beijaram tanto que suas bocas adormeceram, incharam. Os lábios de uma dormiram nos lábios da outra, e vice-versa. Aquilo sim era um beijo de verdade, daqueles que fazem a rua inteira parar só para olhar, daqueles capazes de arrancar um sorriso até daquele que não ama.

As bocas, apesar de juntas, já não se mexiam mais, e sem perceber, apaixonadamente, as duas se tocaram. Trocaram carícias, descobriram prazeres em pontos já tanto explorados por mãos sujas, que até elas poderiam jurar que jamais sentiriam. Assim, da sua maneira, apaixonadamente; coabitaram-se. Estava, portanto, consolidado.

O amor que amanheceu no quarto das duas naquela manhã era magno, puro e acima de tudo verdadeiro. Aquele sentimento era tão grande que seria impossível crescer. Era pleno. O sorriso no rosto das duas era tão belo que parecia que o passado estava apagado. Enfim elas tiveram a sua primeira vez, e foi muito semelhante a que toda menina de quinze anos sonha em ter.

No rádio tocava outra música, mais lenta, acompanhando a calma pós cigarro. Voltaram ao carro e partiram para o trabalho. Mais uma noite, mais uma vez. Entretanto, esta seria diferente. seria tão cheia de particularidades que só saberiam tempos depois.


Raoni Silva Moura

sábado, 10 de abril de 2010

"Amar é a eterna inocência
E a única inocência é não pensar..."
(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

Quero-te

Quero-te bem, quero-te amigo
Amante meu de muitos perigos
Quero-te límpido, transparente
Pra seres quem és e, eu, quem sou

Quero-te aos prantos, quero-te rindo
Quero-te sujo e também limpo
Quero-te ouvindo, quero-te olhando
Quero-te quieto e a falar

Quero-te ainda
Mais do que minha
Aventura boa
De ser amor

Quero-te, mas não só por querer
Quero-te por amar e por ser
Da busca do amor eterna aprendiz
E escrava dos seus doces ardis

Carolina Zuppo Abed

sexta-feira, 9 de abril de 2010

"Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto eu sou transparente"
(Fiódor Pávlovitch Karamázov - Os irmãos Karamázov - Fiódor Dostoiévski)


Contraste

Escolha teu corpo nu
a gosto, chuva azul
deguste a cama quente
à vontade, sol ardente.

Vem vindo pelo canto
à ele, sem prantos
pegue taça e vinho
à nós, com carinho

Prove o sabor materno
a contrário, ódio eterno
chore o ciúme bonito
a senhora, amor finito.

Raoni Silva Moura

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"Quem sabe o que é ver quem se quer partir
E não ter pra onde ir..."
(Quem sabe - Los Hermanos)

Quatro e uma porta
Uma comigo mesmo
O remoto controle sem pilhas
O abajur ao canto, encanto
Saudade da tua sombra

Raoni Silva Moura

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

"Canto que é de canto que eu vou chegar
Canto e toco um tanto que é pra te encantar
Canto para mim qualquer coisa assim sobre você"
(Casa pré-fabricada - Los Hermanos)



Beijo pré-fabricado

Beijar-te aos cantos
tantos outros (en)cantos
que me faz mover um tanto
curando-me, (por)tanto.

Mas tanto não é mais (en)canto
é, (por)tanto, um tanto
de tantos que formam cantos
dançando pelos cantos.

Raoni Silva Moura

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Um violão no canto da parede
Cordas mortas, esquecidas, violadas
Sombra de sol no escuro da sala
Silêncio

Um braço torto que esqueceu o som das notas
Pende agora da cadeira enegrecida
Que balança, ao som da valsa que não toca
No coração em que repousa a alma fria


Carolina Zuppo Abed

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"Vou-me embora pra Pasárgada" (Manuel Bandeira)

Lua nova

Hoje mais uma vez eu vi a lua.
Vi-a como se a nós visse
Vi-a como naquela noite longa
De muitos milênios atrás

Hoje mais uma vez a vi
Novamente plena, lua branca
Vi-a aparecer como lembrança
De algo que há muito esqueci

Vi na lua clara, como espelho
Reflexos de um tempo adormecido
Das coisas que poderiam ter sido
Foram? Creio que não sei mais

Vi-a, novamente linda
Novamente bela, tão bela...
Meus olhos não ousaram baixar
Para não ver o vazio de estar ali.

Carolina Zuppo Abed

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Era agora apenas mais um no topo da lista dos muitos enganos. Cada passo, um erro: assim lhe parecia. Este quase virara acerto por um tropeço descuidado da sorte. Quase - maldição de todas as coisas que nunca são. Já fazia um mês, dois talvez, que ela havia se segurado nisto como se fosse a grande revelação de sua vida. Enroscara-se nesta sólida coluna de ar qual as trepadeiras que, se lhes tiram o apoio, desfalecem. Desprendera-se de todo do chão que, subitamente, lhe parecera tão insólito e insuficiente. Agora, como não poderia deixar de ser, caíra. Despencara no momento mesmo em que a situação se mostrou tal como era. Sem chão, sem alicerce, sem destino, foi andando não sei sobre que ruas até chegar onde estava. Deparou-se com a cilada bifurcada do destino. À sua frente, a dúvida. Atrás de si, os enganos. Olhou para a frente. A estrada bífida exigia uma escolha.

Carolina Zuppo Abed

terça-feira, 18 de agosto de 2009

No nosso aniversário de um ano!!


"Que bobagem as rosas não falam"
(Cartola)



Hoje, um rosa murchou
De papel
Sujou

Prantos, pedaços
Indo embora
O vento

O cheiro
Qual cheiro?
Do Papel

Não! Da rosa
A rosa e o papel.


Raoni Silva Moura





Nomes


Escreva teu nome aqui, junto ao meu, como está no livro que o padre abençoou. Me lembro bem daquele dia. Teu cabelo escorrido, o véu na face. O sorriso brilhava. Tua mãe já gostava de mim naquele época, mas não escondia a birra que ela mantinha por causa daquela vez que chegamos bêbados em casa. Engraçado lembrar disso agora. Antes tudo parecia eterno, bonito e simples. Ah, como se enganam os enamorados. E nós somamos mais dois nessa lista. Serão só dois? Sempre achei que você tinha mais um. E você sempre achou que eu tinha mais várias. E tinha mesmo! Todas dentro de você. Mas tudo bem, isso já não importa mais. Ontem eu fui naquele bar que você gostava de ir quando éramos jovens. Lembra de lá? Você sempre pedia o mesmo drink. Dizia que era o melhor de todos. Agora tem música ao vivo lá. O dono não é mais o mesmo, mas ainda tem a nossa foto no mural. Estranho pensar que venderam o bar e a nossa foto juntos. Aliás, acho que é a única que restou. As poucas que sobraram depois do incêndio você jogou fora. Nunca gostei de fotografias, gosto só das que eu tiro com a cabeça. Pena que as vezes eu não lembro de onde as guardei. A verdade é que eu nunca lembrei onde guardava as coisas. Você sempre cuidou disso pra mim. Lembra aquele dia do casamento da sua irmã, que eu perdi as chaves do carro? E no final elas estavam no meu bolso. Você queria me matar. Quase chegamos atrasados. A sorte foi que o carro da sua irmã quebrou. Também, quem manda contratar esse carros antigos! Por fora são maravilhosos, lindos, conservados. Mas depois que a chave gira é que você descobre a idade do motor. Mas, enfim querida, está de acordo com o valor da pensão? Então escreve teu nome aqui, junto ao meu, que o Juiz irá abençoar!

Raoni Silva Moura

sexta-feira, 3 de julho de 2009

"Vem que a sede de te amar me faz melhor
eu quero amanhecer ao seu redor
preciso tanto te fazer feliz..."
(Roberto Carlos)


De vazios e esperança

Há uma gota de sangue em cada poema.
Há um brilho de belo em cada gota da gente.
Há um pouco de seu em cada coisa que sinto
Há um muito de nós em cada coisa que vejo.

É uma coisa que lembra
que pulsa
e que chora
sempre que sente saudades.

É um abismo sem fundo
um sempre-oco do não
e um eco que diz: nunca mais.

Mas ainda que claro e difuso
toda passagem deixa um rastro
e o fio de prata no mar
lembra à lua a onda que estava ali.

E a presença que há na ausência
contraria o eco, e declara:
que há vida no coração imóvel!
que há sonho na vida vazia!
que há horizonte por trás da bruma!

Carolina Zuppo Abed