terça-feira, 21 de abril de 2009

"Então eu trago das minhas raízes crianceiras a
visão comugante e oblíqua das coisas."
(Manoel de Barros)



E quem nunca teve medo de monstro?

Eu morava numa casa de dois andares, que minha avó insistia em chamar de sobrado. Sobrado, não! Não é só porque ela fica em Pirituba que é sobra! Minha avó, aliás, morava na Aclimação e ia para casa um fim de semana sim, um não.

No meu quarto – não enorme, nem pequeno: o suficiente para eu e a Marcela dançarmos ou jogarmos um jogo – havia a minha cama rosa, uma penteadeira também rosa combinando, uma escrivaninha, uma estante modular, o guarda-roupas, uma cômoda com a TV em cima. Tudo bagunçado, menos a cama e os armários.

Da minha cama, deitada, eu via, à minha direita, na altura dos joelhos, a porta balcão que dava para o terraço. Do lado esquerdo, um espelho grande na parede acima da escrivaninha. Ainda à esquerda, mas agora olhando na direção dos meus pés, a porta do quarto, que deixava aparecer um pedacinho do corredor e o começo da escada para a sala, que logo nos primeiros degraus fazia uma leve curva para a esquerda. Eu nunca gostei de escadas.

Tinha, sempre tive, medo de dormir sozinha. Quando minha mãe me perguntava: “Medo de quê?” Eu sempre respondia: “Da minha imaginação!” De tanto querer dormir na cama dela, “só adormecer, até pegar no sono”, foi-se formando gradualmente um ritualzinho:

– Mãe, se eu precisar...

– ... é só chamar! Mas de preferência...

– ... não precise!

Na nossa maluquice, não tardou a virar um diálogo engraçado e maluquinho: “Si pri” “É só” “Di prê” “Num pri”! E depois: “Lel Said, mama”, “Lel Said, fi”, e quando meu pai estava em casa: “Lel Said baba”, “Lel Said filhotinha”. Mas eu não tinha exatamente uma lel Said*. Eu tinha medo da minha imaginação. De verdade! Eles viriam me pegar. Eles, os monstros!

Eu tinha 2 pontos vulneráveis: a sacada e a escada. Ele podia vir lá de fora ou lá de baixo. Percebendo isso, bolei um esquema para não ser pega desprevenida: virada para a esquerda, olharia ao mesmo tempo para a escada e para o espelho, que me daria uma visão da porta-balcão.

Mas espera aí! – minha imaginação de novo – O monstro pode mandar um mini-monstro anão vir engatinhando até a minha cama, saltar sobre mim e me amarrar! Depois o monstrão maior vem e me pega! Afinal, eu tenho um ponto cego de uns 20 cm!

Não tive dúvidas: me inclinei um pouco para baixo para me certificar que o anãozinho não passaria desapercebido. E só por via das dúvidas mantinha os braços afastados do tronco. Vai que ele consegue chegar pra me amarrar quando eu pegar no sono, né? Aí pelo menos eu tenho movimentos...

*boa noite, em árabe


Carolina Zuppo Abed

4 comentários:

Roberto Ney disse...

isso me lembrou um verso mais ou menos assim... " quando criança, queria ter uma perna menor que a outra, só para poder andar torto"... é bom que algumas coisas da nossa infancia nos acompanhem sempre... se perdermos toda a inocencia, viveremos em um vórtice de dissimulações.
grande abraço!

Toninho Moura disse...

Pronto, não vou dormir de noite!

21 de Abril? Vamos lá!
Não parem! Não parem!

Beijos!

Gabriel Dantas disse...

Olá, sou aluno da usjt e as vezes leio seu blog. me add no msn gabrieldantasgd@hotmail.com

Luiz Orlandini disse...

Acontece que todo mundo, não sei se por milagre ou mistério, há de se ter um pouco essa memória coletiva - qualquer casa, qualquer monstro, qualquer cama, qualquer cômoda, é um pouco a nossa também, a de todo mundo, aquela que a gente fantasia e relembra da infância... a maior saudade é aquela que a gente sente falta de ter! Lel Said!