"Então eu trago das minhas raízes crianceiras a
visão comugante e oblíqua das coisas."
(Manoel de Barros)
E quem nunca teve medo de monstro?
Eu morava numa casa de dois andares, que minha avó insistia em chamar de sobrado. Sobrado, não! Não é só porque ela fica em Pirituba que é sobra! Minha avó, aliás, morava na Aclimação e ia para casa um fim de semana sim, um não.
No meu quarto – não enorme, nem pequeno: o suficiente para eu e a Marcela dançarmos ou jogarmos um jogo – havia a minha cama rosa, uma penteadeira também rosa combinando, uma escrivaninha, uma estante modular, o guarda-roupas, uma cômoda com a TV em cima. Tudo bagunçado, menos a cama e os armários.
Da minha cama, deitada, eu via, à minha direita, na altura dos joelhos, a porta balcão que dava para o terraço. Do lado esquerdo, um espelho grande na parede acima da escrivaninha. Ainda à esquerda, mas agora olhando na direção dos meus pés, a porta do quarto, que deixava aparecer um pedacinho do corredor e o começo da escada para a sala, que logo nos primeiros degraus fazia uma leve curva para a esquerda. Eu nunca gostei de escadas.
Tinha, sempre tive, medo de dormir sozinha. Quando minha mãe me perguntava: “Medo de quê?” Eu sempre respondia: “Da minha imaginação!” De tanto querer dormir na cama dela, “só adormecer, até pegar no sono”, foi-se formando gradualmente um ritualzinho:
– Mãe, se eu precisar...
– ... é só chamar! Mas de preferência...
– ... não precise!
Na nossa maluquice, não tardou a virar um diálogo engraçado e maluquinho: “Si pri” “É só” “Di prê” “Num pri”! E depois: “Lel Said, mama”, “Lel Said, fi”, e quando meu pai estava em casa: “Lel Said baba”, “Lel Said filhotinha”. Mas eu não tinha exatamente uma lel Said*. Eu tinha medo da minha imaginação. De verdade! Eles viriam me pegar. Eles, os monstros!
Eu tinha 2 pontos vulneráveis: a sacada e a escada. Ele podia vir lá de fora ou lá de baixo. Percebendo isso, bolei um esquema para não ser pega desprevenida: virada para a esquerda, olharia ao mesmo tempo para a escada e para o espelho, que me daria uma visão da porta-balcão.
Mas espera aí! – minha imaginação de novo – O monstro pode mandar um mini-monstro anão vir engatinhando até a minha cama, saltar sobre mim e me amarrar! Depois o monstrão maior vem e me pega! Afinal, eu tenho um ponto cego de uns 20 cm!
Não tive dúvidas: me inclinei um pouco para baixo para me certificar que o anãozinho não passaria desapercebido. E só por via das dúvidas mantinha os braços afastados do tronco. Vai que ele consegue chegar pra me amarrar quando eu pegar no sono, né? Aí pelo menos eu tenho movimentos...
*boa noite, em árabe
Carolina Zuppo Abed
terça-feira, 21 de abril de 2009
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4 comentários:
isso me lembrou um verso mais ou menos assim... " quando criança, queria ter uma perna menor que a outra, só para poder andar torto"... é bom que algumas coisas da nossa infancia nos acompanhem sempre... se perdermos toda a inocencia, viveremos em um vórtice de dissimulações.
grande abraço!
Pronto, não vou dormir de noite!
21 de Abril? Vamos lá!
Não parem! Não parem!
Beijos!
Olá, sou aluno da usjt e as vezes leio seu blog. me add no msn gabrieldantasgd@hotmail.com
Acontece que todo mundo, não sei se por milagre ou mistério, há de se ter um pouco essa memória coletiva - qualquer casa, qualquer monstro, qualquer cama, qualquer cômoda, é um pouco a nossa também, a de todo mundo, aquela que a gente fantasia e relembra da infância... a maior saudade é aquela que a gente sente falta de ter! Lel Said!
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