terça-feira, 17 de maio de 2011

"A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios." (Machado de Assis)

Ressaca

Não me lembro de minha mãe quando estava acordada. Lembro-me dela sempre dormindo, deitada em meio aos seus brancos lençóis. Como um anjo, envolta por finos véus de linho. Habitava seu altar sempre imóvel, inacessível. Eu a olhava com os olhos bem abertos, admirando-a em cada rara mudança de posição, como se fossem mudas esculturas sucedendo-se umas às outras. Passava, às vezes, uma tarde inteira ao pé de sua cama, inventando brincadeiras quietas para não acordá-la, e sempre parando para olhar para ela. Amar minha mãe era ficar ali, vendo-a dormir, como um guardião de seu sono sacro. Amá-la era vê-la enquanto ela mesma não via nem a si, nem a mim. Eu sabia. E compreendia. No alto dos meus oito anos de sabedoria, eu amava.


Jamais escreveria um livro sobre minha mãe. Minha mãe não cabia em palavras. As palavras não faziam parte de seu mundo. Ela era feita toda de cores. Espalhada sobre sua tela branca, minha mãe era o vermelho em seus lábios finos, o rosa na sua face magra, o roxo embaixo dos olhos sempre fechados e, por trás deles, o verde intenso que eu adivinhava, mas nunca via. Todas essas cores destacavam-se no branco de sua pele, que contrastava com o preto de seus cabelos de um modo que faria Almodóvar se impressionar. Minha mãe era uma galeria inteira de cores e formas, quadros e fotos.


Mamãe falava comigo através dos cheiros. A cada dia emanava de sua ara um aroma diferente. Eu, sentinela dedicado, com o tempo fui aprendendo a entender cada cheiro, a ouvir sua mensagem escondida. Porque os cheiros que se desprendiam de mamãe contavam histórias, histórias sobre ela, sobre a vida, sobre todos nós. O que eu mais gostava era um cheiro bastante complexo, que eu não consegui decifrar até descobrir a embriaguez. Aquele cheiro – que mais tarde vim a saber ser a mistura de álcool, cevada e o perfume adocicado da penteadeira – era forte e rescendia a vida, e por isso era o meu preferido: ele trazia notícias de uma vida que eu pensava não existir, de um mundo fora do quarto. Era a certeza de que havia algo além daquilo, algo mais a dedicar uma vida. Às vezes esse cheiro trazia consigo algum outro de empréstimo, um mais cítrico, amadeirado ou apimentado, mas esses cheiros visitantes nunca se demoravam a ir embora. Já o cheiro de mamãe, esse sim, persistia marcante por todo o ambiente, dominava-o, preenchia-o. Quase não parecia pertencer à mesma pessoa que, em outros momentos, cheirava a flores brancas e algodoal, um cheiro tão fraco que se escondia se não prestássemos atenção.


Um dia, brincando próximo da janela do quarto que era o cenário da minha infância, ouvi minha mãe suspirar fundo enquanto se virava. Parecia estar acordando, e durante alguns minutos sem duração eu acreditei que era isso que aconteceria. Mas após o movimento de cabeça mais longo da minha vida percebi que nada mais iria acontecer. Mas era tarde. Aquele som vindo da quietude eterna de minha mãe era um chamado, uma sedução, uma promessa. Quis, mais do que já havia querido, estar mais perto dela. Queria senti-la. Queria poder amá-la de outro lugar que não fosse o chão.


Subi na cama com tanto respeito, amor, temor, humildade que parecia um velho sábio aprisionado naquele corpo de menino. Quieto, muito quieto, fui me aproximando. Deitei-me e esperei. Silêncio. Cheguei mais perto, só um pouquinho. Fui aproximando meu travesseiro do dela até eles se encostarem. O mais próximo de minha mãe que eu jamais havia chegado.


Tomado de coragem por aquela proximidade, encostei de leve meu pé em seu pé. A pele de mamãe era quente como um banho antes de dormir. Fiquei ali, encolhido, quieto, a felicidade e o medo tão próximos um do outro que eu quase não os distinguia. Era tão bom estar ali que eu não queria que acabasse. Sentia o calor fugir das minhas mãos e concentrar-se nas minhas faces, espelhando o sempre rubro rosto de minha mãe. Não ousava nem respirar. Aspirava o mínimo de ar possível e o guardava em meu peito quanto tempo conseguisse, tentando aprisionar aquele perfume que hoje era brando, branco, leve. Meu coração batia curto, apressado, como um beija-flor que voasse parado no ar.


O tempo que fiquei ali para mim não existiu, mas durou toda a minha vida. Quando acordei, não quis abrir os olhos, com medo de que tivesse sido um sonho. Apertei-os com força, e me aninhei ainda mais. Meu coração voltou a bater forte, mas dessa vez não era o beija-flor que agitava meu peito. Estava inquieto, assustado.


Passados alguns minutos, fui me acalmando. Respirava fundo, demoradamente, e ia aos poucos relaxando os olhos. Até que resolvi abri-los. Eu precisava voltar. Entreabri primeiro um olho, só uma frestinha, e o que vi me fez sorrir. Eu ainda estava lá. Abri os olhos de uma vez. Ela também estava lá. Via seus cabelos negros bagunçados sobre o travesseiro, no outro canto da cama. Feliz, deslizei para o chão. Fiquei lá ainda por um tempo, brincando como de costume, no meu canto, no meu chão.


Entrou no quarto a dona da pensão, como todos os dias. Hoje, porém, vi que sua expressão mudou assim que pôs os olhos em minha mãe. Ela ficou ali, parada à porta, com a bandeja de café-da-manhã que trazia pra mim ainda em suas mãos. Como eu estivesse com fome, dei a volta na cama e fui em direção a ela, pegar o meu café. Ela ainda olhava fixamente para minha mãe. Olhei também, e o que vi não mais me abandonou.


Eram lindos, os olhos dela. Verdes. Muito verdes. Guardavam em si todo o mistério de uma floresta viva e muda. Qualquer um que os visse ia se sentir atraído para ela, embora soubesse no mesmo momento que não mais sairia de lá. O aro arroxeado que os emoldurava carregava em si um sinal de perigo. Cilada. Era fácil perder-se naqueles olhos. Era preciso perder-se naqueles olhos.


O médico disse que foi o coração, que não aguentou e parou de bater.


Carolina Zuppo Abed

6 comentários:

Renata Tolentino disse...

Oi Carol! Eu já estava sentindo falta de ler os seus textos aqui no blog! Os do Raoni são ótimos, mas os seus também, e você andava muito sumida! hehehehe Lindo, lindo, lindo... Você tem um dom, menina! Beijos!

Carolina Zuppo Abed disse...

Oi Rê! Que saudade! Muito bom ver você por aqui!
Obrigada, querida. É sempre muito bom ver resultados para o nosso trabalho.
Andava sumida mesmo, fazia muito tempo que eu não escrevia... Espero que isso não volte a acontecer!
Um beijo enorme!

Anônimo disse...

Talentosa como sempre! Raoni

Júlia disse...

Oiii Carolzinha!
Que linda, não sabia que tinha um blog!
Escuta, amanhã eu não vou por causa do francês mesmo! Quando for de sábado a gente combina, senão eu não acordo hehehehe
Beijossss

Ju

http://juruzando.blogspot.com/

Mary Jane disse...

é como se eu conhecesse vc e sua historia..é como se eu estivesse presente! lindo! parabens!

Nayara disse...

Nossa, parabéns, chorei!